Na trilha do velho rio - 6 (Sábado, 08 Agosto 2009)
Bom Jesus da Lapa, Bahia
Domingo, 8 de agosto de 1999
A miséria começa a ser cada vez mais constante. De São Roque até aqui, a diferença já é gritante. Na Canastra, encontramos gente simples que vivia da terra ou do turismo. A cada parada mais ao norte, a pobreza se acentuava. O norte de Minas é uma região pobre como já havia ouvido falar. Mas ao aproximarmos mais da Bahia, as diferenças foram saltando aos olhos.
Entramos na Bahia por Carinhanha depois de um dia difícil. Pedimos informações a um sujeito sobre como pegar a rodovia para Bom Jesus. Ele nos pediu carona. Depois dos acontecimentos da tarde, mesmo temendo cometer um deslize, concordei em levá-lo até um posto, como pedira, no início da estrada. Não consegui entender direito o que ele falava. Era analfabeto, acredito, e parecia estar embriagado, segundo Gustavo. Deixamos o sujeito no local combinado. Me senti aliviado. Quando ele saiu do carro, um homem já de idade (ou aparentemente) nos pediu carona. Depois do "embriagado", relutei em aceitar. Tenho certeza que Gustavo sentiu o mesmo.
Novamente pensei ainda estar em débito e concordei em levá-lo até Feirinha, um povoado a cerca de 40 quilômetros dali. O sol já se punha. Foi um bom acerto. Ao aceitar o pedido de carona, procurei compensar a ajuda que tinha recebido à tarde.
José contou-nos que era agricultor e havia sido assentado num terreno do Incra. Vivia de plantar milho e feijão com a família. Era pequenino e seu corpo era extremamente magro. Tinha o rosto queimado de sol e coberto de rugas profundas. Carregava um saco plástico com três pães do tipo para cachorro-quente.
Sua instrução educacional devia ser mínima ou nenhuma. Ele falava como os lavradores ou os retirantes que sempre aparecem nos telejornais. Vestia-se também como o estereótipo do homem rude do campo: camisa com alguma estampa, calça de tecido, sapato e um chapéu pequeno, que pouco poderia esconder seu rosto do sol.
José disse que – e a família, naturalmente – sofreu bastante com a seca do ano passado. E este ano já havia perdido tudo o que plantara, pelo mesmo motivo. Havia tomado financiamento num banco público – não me lembro qual. Estava endividado e não sabia como iria pagar o empréstimo.
Precisava ir a Feirinha, ou melhor, um lugar próximo dali para pegar uma guia ou um documento para entregar ao hospital em que seu filho estava internado. O garoto de 10 anos havia quebrado a perna.
O pai contou que há uns 20 dias o menino esteve bastante doente, com catapora. Imagino que nas condições em que a família vive, mesmo a catapora deve ser uma doença de risco. Mas ele acabou se recuperando. Ainda fraco, resolveu brincar em algum lugar – os adultos estavam trabalhando – e acabou machucando o pé. A família não deu tanta importância ao ferimento. Com o tempo, contudo, o pé do menino inchou, ele passou a ter febre alta, não consegui pisar, pôr o pé no chão.
A explicação do lavrador para este aparente "descaso" foi triste: "Nois é pobre." Segundo ele, a família acaba não dando a importância devida a problemas de saúde, esperando sejam resolvidos com o tempo – por Deus, imagino -, por problemas financeiros.
Só quando o garoto ficou com o pé bem inchado e chorava, ele o levou "no lombo de um animal" até Feirinha, em busca de atendimento médico. Uma chapa no hospital público constatou que o pé estava quebrado. O menino acabou internado em Carinhanha.
Deixamos José a aproximadamente um quilômetro ä frente de Feirinha. Era noite e ela ainda seguiria a pé por uma estrada de terra mais uns quatro quilômetros, segundo disse. Só pudemos desejar que tivesse sorte...
Foi um dia complicado. Chegamos a Bom Jesus por volta das 19h30 depois de um dia de viagem. Percorremos cerca de 150 quilômetros desde Carinhanha à noite numa estrada asfaltada, mas sem faixas marcadas e com sinalização bastante precária. Não podíamos ficar em Carinhanha, uma cidade onde não havia nada (como disse Simões [Edu Simões], um fotógrafo de São Paulo que encontramos na beira do rio e percorria o trecho de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas).
Saímos de Januária por volta das 9 horas. Fomos até Brejo do Amparo, um vilarejo a uns cinco quilômetros dali. Buscávamos uma igreja construída por jesuítas em 1688.
É bastante bonita. Está "solta" no meio do nada. Há uma reforma, mas ela parece ter sido interrompida. Conseguimos entrar por uma porta lateral. A nave tem pinturas e o altar feito de madeira está vazio. Há material para obras espalhado por toda parte. Bem ao lado da igreja, existe um cemitério, com inscrições repletas de erros de ortografia.
Para chegar até a igreja é preciso passar Brejo do Amparo e percorrer um pequeno trecho de chão. Foi preciso perguntar em toda parte que passávamos para encontrá-la.
De volta a Brejo, paramos numa venda em busca de uma cachaça da qual já havíamos ouvido falar. Até o pai de Gustavo havia comentado com ele por telefone. Enquanto comprávamos a bebida, que o senhor da venda colocou em duas garrafas de Cinzano, uma mulher e um homem, ambos negros, entraram. Apressada, a mulher chamou pelo vendedor. Foi incisiva e pouco educada. Eu disse a ele que a atendesse, enquanto eu colocava as garrafas em sacos plásticos. Ela havia lhe pedido "a dela". O vendedor encheu um copo comum (esqueci o nome daquele copozinho de vidro mais comum) até a boca. A mulher o pegou e de um gole só tomou mais da metade do conteúdo. E partiu, enquanto o homem que a acompanhava reclamava que ela havia deixado pouca cachaça no copo.
De Brejo do Amparo, tomamos a estrada de volta a Januária. Pegamos outra até Itacarambi – uns 30 quilômetros.
Seguimos então por uma estrada de terra rumo a Carinhanha, na Bahia. Engraçado é que toda vez que falávamos algo de bom sobre a estrada ("não está tão ruim") ela piorava. Apesar disso, correu tudo bem (e lentamente) até Manga, um vilarejo isolado na margem oeste do São Francisco onde tivemos certa dificuldade para encontrar Coca-Cola. Foi algo em torno de 40 quilômetros até lá. Restavam mais ou menos 60 até Carinhanha.
A estrada de terra foi só piorando. Durante um bom tempo, sempre havia gado e casebres no caminho. Até que tudo ficou deserto. A estrada ficou tão estreita que apenas um carro poderia passar (embora não tenhamos visto nenhum outro). Havia apenas vegetação e a estrada estreita.
Ficávamos sempre de olho no marcador de quilometragem para ver se nos aproximávamos dos 60 quilômetros. Mas na velocidade que estávamos a marca parecia sempre distante.
Depois de muitos minutos (não sei quantos ao certo, uma hora talvez) passamos a temer estar perdidos. Talvez tivéssemos pego uma bifurcação errada, embora tivéssemos sempre percorrido o percurso principal. Mas sabe-se lá... Eu prestava bastante atenção na temperatura do motor. Fazia um calor infernal. O sol das 13 horas estava muito forte. A toda hora a ventilação do motor era acionada.
Por fim, para nossa alegria, chegamos a um povoado. Foi com alívio que recebemos a notícia de que estávamos mesmo na direção de Carinhanha e a balsa que nos faria cruzar o rio de mesmo nome, que faz divisa entre Minas e Bahia, estava próxima.
Seguimos as indicações do pessoal do povoado e chegamos a uma estrada de terra em condições precaríssimas. A terra parecia areia, de tão fofa. Mesmo em baixa velocidade, o carro "jogava" para o lado o tempo inteiro. Temi prosseguir e retornamos ao lugarejo para obter orientações mais detalhadas.
O mesmo sujeito a quem havíamos perguntado anteriormente disse que estávamos no caminho certo e bem perto da balsa, não deveríamos ter voltado. Eu reclamei da estrada e ele afirmou que era assim mesmo e dava para passar, carros pequenos sempre cruzavam o lugar. Retomamos o percurso.
Logo que vimos as marcas dos pneus onde fizemos a manobra para voltar, a terra foi ficando mais e mais fofa. Assim que passamos uma árvore bem no meio do trajeto, perdi o controle do carro na areia seca e paramos atolados. Foi desolador. Estávamos felizes porque o trecho de terra já estava bem perto do fim.
Não consegui ir para frente nem para trás. A roda dianteira esquerda rodava e rodava, jogando areia para todos os lados. Tentamos empurrar, colocar pedras para aumentar a tração, mas não conseguimos tirar o carro dali. Decidimos que Gustavo iria a pé até a balsa, que estaria perto, imaginávamos. Continuei tentando tirar o carro.
Foram cerca de três horas ali sozinho. Durante esse tempo nada aconteceu. Havia apenas o som dos muitos pássaros da mata, que a toda hora passavam voando sobre a estrada. Me senti no meio do nada.
Tentei como pude desatolar o carro. Cavei, enfiei pedras e pedaços de galhos. Deitei no chão embaixo do carro para poder cavar melhor e feri meus dedos na terra.
O sol estava horrível. A poeira invadiu todo o carro (não me preocupei muito em não me sujar e acabei sujando também o interior do carro).
Acabei desistindo. Estava preocupado com Gustavo. Só depois ele me contou que chegou até o local da balsa (não tão perto como o homem havia dito), que não estava lá. Pediu ajuda a um rapaz que estava do outro lado do rio.
Não sei direito, vou perguntar melhor a Gustavo (ele está dormindo agora), mas ele foi parar do outro lado, tentou ajuda, mas ninguém quis ajudá-lo. Ele disse ter ficado bem angustiado com essa situação.
Cheguei de carro ao Rio Carinhanha no exato momento em que Gustavo chegava na balsa ao trecho de Minas. Entrou no carro e, aliviados, nos dirigimos para cima da balsa. Acho que a foto da travessia deve mostrar a nossa situação.
Antes disso, depois das três horas solitárias na estrada e das várias tentativas fracassadas, decidi procurar Gustavo. Primeiro, comecei a andar na estrada apenas para ver se dava para avistar o local da balsa. Não dava. Pensei em prosseguir, mas havia deixado o carro aberto. Voltei, fechei tudo e comecei a caminhada. Uns 200 metros adiante, notei o sol já baixo (eram umas 17 horas) e me lembrei da lanterna no porta-luvas. Voltei novamente ao carro, peguei a lanterna e também a bússola (!?). Retomei a caminhada. Mais ou menos no mesmo ponto anterior (uns 200 metros), ouvi um barulho atrás de mim que parecia o de um motor. Vi poeira levantada na estrada, ainda longe, e comecei a correr até o carro.
Cheguei assim que o caminhão apareceu. Solicitei que parasse e pedi ajuda ao motorista. Ele disse que não tinha uma corda para puxar o carro, mas havia muita gente no caminhão. Ele os chamou e desceram mais seis homens que ergueram a frente do carro e o empurraram enquanto eu dava ré. Finalmente o carro estava livre.
Agradeci a todos. Eram pessoas simples que falavam errado: "Sozinho é pobrema, né moço?"
Decidi seguir o caminhão, que também tinha lá suas dificuldades com a terra fofa. Mas a nuvem de poeira que ele deixava era tamanha que eu não conseguia enxergar a estrada. Fui deixando que ele se distanciasse.
Não é que o carro parou de novo na areia? Motorista de cidade na estrada de chão....
Vi com agonia o caminhão seguir em frente, encaixei a ré e consegui sair. Não podia deixar isso acontecer de novo. O jeito foi não me importar muito com carro. Comecei a seguir, pus a segunda marcha, mantive o giro do motor sempre em alta e fiz um pequeno rali, jogando poeira para todo lado e tentando manter o volante sob controle até chegar ao local da balsa.
PS: Achei meu boné.
13:15 Escrito por fiume | Permalink | Comentários (0) | Tags: aventura, fotografia, viagem | | del.icio.us | | Digg | Facebook | | Imprimir