Na trilha do velho rio - 13 (Segunda, 17 Agosto 2009)

Penedo, Alagoas
Terça-feira, 17 de agosto de 1999

Chegamos ao fim da jornada. Ontem, enfim. Foi com alegria que testemunhamos o São Francisco se encontrar com o mar, numa confusão em forma de um imenso triângulo.

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De carro, fomos a Piaçabuçu, cerca de 30 quilômetros de Penedo e 15 da foz. Alugamos um barco e seguimos descendo o que havia sobrado do rio. Foram 50 minutos até a parada ao lado de uma lagoa, já no delta.

A foz do São Francisco é belíssima. Assustadora. Abre-se um enorme triângulo e já fica difícil saber o que é rio, o que é mar. Pequenas ondas seguem por toda parte, numa agitação contínua. A água é ligeiramente salgada, apenas.
Na areia, há pedaços de troncos de coqueiros e outras árvores, cocos, folhas e toda sorte de coisas trazidas pelo rio, como produtos industrializados – o corpo plástico de uma boneca, por exemplo. De costas para o rio, tem-se a impressão que se formou um grande deserto de areia e entulhos após a passagem de um furacão.

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É uma área de proteção ambiental. A pouca presença humana são alguns pescadores, em jangadas ou na praia da foz. Do lado de Sergipe, um farol aponta solitário o que já é mar, rente ao rio. É o que resta de um povoado, contou Arthur, o barqueiro que nos conduziu. Todo o povoado acabou encoberto pela areia, depois que o volume das águas na foz diminuiu pela ação do homem e as embarcações grandes, vindas do mar, deixaram de entrar no São Francisco. Os moradores abandonaram o povoado.

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A permanência na foz foi de mais ou menos três horas – apreciando a paisagem ou, simplesmente, saboreando a conclusão do percurso. No retorno a Piaçabuçu, Arthur parou o barco num banco de areia bem no meio do rio. Ficamos no centro do leito, vislumbrando por alguns instantes Alagoas, Sergipe, a foz, o mar e o interior do rio, quando o sol já começava a baixar na margem sergipana. Um cenário difícil de descrever...

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Indescritível, contudo, foi a sensação de cair nas águas da foz (até bem à vontade), depois dos dias de jornada. Todo o cansaço foi imediatamente esquecido, cedendo lugar a uma certa euforia. Havíamos concluído uma jornada de cerca de 3 mil quilômetros, pelo curso do rio, da nascente à foz.

Foi um boa aventura. Percorremos cerca de 3 mil quilômetros, dos quais apenas nos 531 entre Xique-Xique e Juazeiro não estive ao volante – ainda me restam mais ou menos 2,5 mil até Goiânia.

Gustavo foi um bom parceiro, apesar das muitas reclamações sobre muitas coisas – manteve coerência quanto a isso, como ele mesmo disse – e parecer demonstrar, com sua pressa de seguir sempre em frente, de chegar logo à foz, que o mais importante era cruzar todo rio – não conhecê-lo bem.

Não foi possível, naturalmente. Conhecer o São Francisco com profundidade nestes poucos dias. Mas pudemos ter uma noção. De como ele é importante para muitos e sobre o povo que vive às suas margens.

Alguns dos integrantes dessa população permanecerão, por razões boas ou ruins. Arthur, por exemplo. Foi estranho vê-lo com o filho. Arthur era o barqueiro que nos levou até a foz. Aparenta muito mais do que seus 42 anos. Tem os cabelos bem grisalhos e o rosto bronzeado e coberto de rugas. Seu filho, um adolescente alto, conduzia o barco, enquanto Arthur permanecia na proa. Comunicavam-se com olhares e sinais. Não se falavam. Permaneceram sempre um na proa e outro na popa. O garoto não disse uma palavra sequer. Foi inevitável tentar imaginar se conversam em alguma hora, em casa, e sobre o que falavam entre si.

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Arthur pertence a uma associação de barqueiros que levam visitantes à foz do rio, como explicou. A entidade paga imposto e luta contra os barqueiros clandestinos. No mundo moderno, todos se unem, se organizam e somam forças, até os banqueiros de um pequeno povoado de Alagoas às margens do São Francisco.

O rio é belo e imenso, cercado pela riqueza de alguns agricultores, pela miséria de outros e da maior parte da população que vive às suas margens. Estranho imaginar como seria quando Américo Vespúcio o desbravou – foi o navegador italiano quem o "descobriu", em 4 de outubro de 1501, dia de São Francisco de Assis – ou mesmo quando o francês Auguste de Saint-Hilaire encontrou sua nascente, no século passado. Hoje, é vítima constante das mãos humanas. Está assoreado em tantos trechos e tem tantas barragens que alteram o ecossistema e a vida das pessoas – Arthur contou que as barragens impedem que as cheias tragam material orgânico que serve como adubo para os arrozais nas ilhas nas proximidades da foz, razão pela qual o cultivo caiu drasticamente.

Estou agora em Pontal do Peba, praia quase deserta, em Alagoas, próxima da foz. Há apenas alguns pescadores e carros esporádicos que a usam como pista entre um povoado e outro. Gustavo partiu de manhã para Maceió, onde tomaria um vôo até Vitória. Fiquei mais um dia para descansar. Resolvi ver o mar.

Lembro-me da sensação que tive ao vê-lo no encontro com rio. E se continuássemos? Isso faz toda a jornada dos últimos dias parecer tão pequena...

Foi um sentimento tolo, naturalmente. Mas compreensível. Explico. O homem um dia olhou para o mar e decidiu seguir em frente, não foi? Depois, fez o mesmo com céu. E ainda continua...

Mas minha jornada chegou ao fim. Foram quase 100 cidades no percurso, cruzando cinco Estados da nascente à foz em 15 dias – hoje seria o 16º.

Aqui termina a minha pequena aventura na trilha de um velho rio – o maior totalmente brasileiro. Talvez, algum dia, algum parente futuro encontre esses escritos num canto qualquer. Se disser que teve um antepassado meio maluco, ficarei feliz.

16:35 Escrito por fiume | Permalink | Comentários (0) | Tags: aventura, fotografia, viagem | |  del.icio.us | | Digg! Digg |  Facebook | |  Imprimir