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Segunda, 10 Agosto 2009

Na trilha do velho rio - 7

Juazeiro, Bahia
Terça-feira, 10 de agosto de 1999 (véspera do fim do mundo)

Matei um burro ontem na estrada. Foi o pior dos acontecimentos. Foi muito, muito rápido. Havíamos cruzado o São Francisco em Barra, depois de deixarmos Bom Jesus da Lapa. O motorista de um ônibus que cruzava o rio conosco na balsa e tinha puxado conversa já havia nos alertado sobre a presença de animais na pista até Xique-Xique.

Eu estava atento à luz de um veículo distante à nossa frente quando o animal "subiu" no capô do carro. Foi lançado longe. Eram mais ou menos 19h30. Gustavo chegou a me avisar. Ele viu o bicho primeiro. Eu disse: "Onde?" E foi só.

Foi tudo muito assustador. Gostaria de ter tido mais calma nos instantes a seguir. Nem bem olhamos as avarias, seguimos em frente.

Gustavo ficou extremamente assustado. Gritava que fôssemos embora logo. Temia que fôssemos abordados ali sozinhos na estrada. Isso nem passou pela minha cabeça. E se tivesse ocorrido com uma pessoa. É preciso calma nestas situações...

É preciso ter calma em qualquer tipo de acidente. Gostaria de ter avaliado a avaria do carro e dado uma olhada no bicho.

Quando vi o burro, milésimos de segundo antes da colisão, tive Rogério na mente. Me lembrei só dele, não do que lhe havia acontecido. Talvez por isso não tenha tentado desviar o carro do bicho.

[Há uns três anos, Rogério capotou o carro na estrada indo de Goiânia para Brasília ao desviar de um cachorro. Perda total do carro. Ele teve um arranhão na perna.]

O capô do carro ficou destruído. Um farol, o esquerdo, foi quebrado e a frente afundou, atingindo o radiador. Mesmo assim, ele rodou bem até Xique-Xique. Paramos num hotel e acionei o seguro.

Foi uma noite tensa. Gustavo ficou bem estressado. Não pôde comer direito.

Sou naturalmente o culpado pelo acidente. Confiei demais na minha "nova" visão. Aquele burro não deveria estar solto na beira da estrada; eu não deveria estar dirigindo à noite.

Foi uma sucessão de acontecimentos imprevistos. Logo de manhã, em Bom Jesus da Lapa, deixamos o carro para ser lavado. Não poderíamos prosseguir com toda aquela poeira dentro dele, por causa do "atolamento" do dia anterior. O conceito de lava-jato era bem diferente: o carro só ficaria pronto às 14 horas.

Fomos visitar a igreja no interior de uma gruta. É surpreendente. Não foram necessárias grandes adaptações. A gruta em si é um templo. Fica bem ao lado do São Francisco e é o grande palco de uma romaria anual, que perdemos por apenas dois dias de atraso, por desconhecimento.

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Os freqüentadores da igreja são na maioria romeiros. Gente pobre e castigada, que reza por uma vida melhor ou pede uma graça. Bastava prestar atenção às rezas para constatar isso.

Num calor altíssimo, subimos uma trilha de pedras até o alto do morro, onde havia uma cruz. Dali via-se toda a cidade e parte do rio. Atento às reações dos fiéis, notei uma mulher já idosa, muito magra e pequena. Se eu e Gustavo subimos a trilha sem facilidades, fiquei impressionado como ela estava ali. Coisas da fé...

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Ela me pediu fogo. Queria acender uma vela. Tinha a pele do rosto muito enrugada; os cabelos brancos presos atrás, mas ainda despenteados. Seus olhos eram avermelhados, como se estivessem irritados, e caídos. Estava na porta de um pequeno vão sob a cruz, onde havia a imagem de uma santa.

Depois de conseguir fósforos com outro romeiro, a velha ajoelhou-se sob a estátua, acendeu a vela com dificuldade – suas mãos tremiam – e fez sua prece. Com uma voz trêmula e estridente, pediu uma vida melhor para ela e sua família e "para todo o Brasil". Fez a prece três vezes.

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Fiquei de certa forma intrigado, tentado a imaginar como seria a prece de uma velha de classe econômica alta, uma pessoa rica e bem instruída. Será que ela também pediria por todos?

Enquanto eu e Gustavo descíamos o morro, nós a encontramos no meio do percurso. Falava sem parar com uma mulher jovem que carregava uma criança. Eu mal conseguia entender suas palavras apressadas.

Perguntei-lhe o nome e o porquê do pedido coletivo. Não pude entender muito. Em resumo, porque o País precisava.

Uma curiosidade sobre o alto do morro. Há uma pedra cinza claro que pode dizer se uma pessoa tem vida longa ou não. Basta bater com um pedra pequena nela. Se a pedra grande "tinir", na linguagem local, a pessoa viverá bastante. Se não "tinir", pode já ir para casa para encomendar "o pijama de madeira", como nos explicou o dono de uma barraca de refrigerantes.

Acabei me esquecendo de bater na pedra. Melhor assim. Depois de todos os pensamentos dos últimos tempos, já pensou se ela não tinisse?

Havíamos mudado os planos e decidido deixar Bom Jesus assim que o carro ficasse pronto. Partiríamos, assim, às 14 horas para Xique-Xique, em vez de permanecermos mais uma noite na cidade.

Gustavo reclamava o tempo todo de Bom Jesus. Dizia que a cidade era pobre e suja. A sujeira o aborrecia bastante. Havia lixo jogado por toda parte, talvez por causa da festa de dois dias antes.

A cidade não era muito diferente do que eu imaginava. Mas a miséria havia se acentuado ao máximo até este trecho da viagem.

Na parte comercial de Bom Jesus, perto da igreja da gruta, a cidade era uma grande feira de todos os tipos de bugigangas: eletrônicos do Paraguai, comida, chapéus, bonés de grandes marcas falsificados, roupas, peneiras, pratos, copos, etc. Quase todas as bancas ficavam na rua, próximas da calçada, apesar do trânsito desorganizado, repleto de muitas e muitas motos e bicicletas.

Fomos ao hotel arrumar nossas coisas e saímos para almoçar. Não achamos um restaurante decente como na noite anterior. Comemos mal.

Seguimos até o lava-jato, que não correspondia ao conceito, mas decidimos ver o rio até que o relógio se aproximasse mais das 14 horas. Em Bom Jesus, o São Francisco parece bem assoreado. Há bancos de areia, muita sujeira nas margens, carcaças de barcos, e o rio parece "vazio",

O carro não ficou pronto no horário combinado. O atraso foi de quase 1h30. Isso acabou fazendo que nossa viagem até Xique-Xique invadisse a noite...

Hoje de manhã, dia seguinte ao acidente, a seguradora enviou um guincho para levar o carro avariado e um táxi para nos levar a Juazeiro, a 500 quilômetros de Xique-Xique, terra quente que nem vimos direito.


PS: 1. Na véspera do fim do mundo, ouvimos no rádio uma curiosa entrevista com Nostradamus, com um pouco de sotaque nordestino, e a história de uma mãe que foi parar na cadeia porque deu uma grande surra na filha de 13 anos que cedeu aos argumentos do namorado de que deveriam fazer sexo, pois o mundo iria acabar mesmo.

2. Tive um sonho em que morava numa casa enorme, cheia de grandes janelas. Crisã também morava nela. Ventava muito e tínhamos de fechar as janelas, que batiam sem parar. Também começou a chover forte. Além de Crisã, Irene estava no sonho.

16:10 Escrito por fiume em Aventura, Fotografia, Viagem | Permalink | Comentários (0) | Tags: aventura, fotografia, viagem | |  del.icio.us | | Digg! Digg |  Facebook | |  Imprimir

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